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Ritmos do Fim: Uma Despedida

  • Natércia Godinho
  • 8 de jan.
  • 6 min de leitura

Manhã cinzenta de outono, 1970. O céu parecia pesar sobre a cidade, um manto de nuvens densas que escondia qualquer traço de luz. O rio Tejo, geralmente prateado, refletia o tom plúmbeo do céu, escuro, quase imóvel, como se também sentisse o peso daquela manhã. O cais de Lisboa, com suas pedras gastas e escuras, exalava decadência, marcado por décadas de partidas e retornos, carregado de histórias de chegadas e despedidas.


As despedidas marcavam o ritmo daquela manhã. Mães jovens, com rostos pálidos e olhos marejados, apertavam contra si os filhos pequenos, enquanto se despediam dos maridos com abraços rápidos e olhares cheios de medo e incerteza. Despedidas contidas, como se o silêncio fosse a única forma de suportar a dor. Palavras engolidas para que os filhos não percebessem o que estava por vir, para que os maridos não carregassem ainda mais culpa no navio que os esperava.


Crianças agarravam-se às saias das mães, algumas choravam, outras olhavam em silêncio, confusas, sem compreender por que seus pais precisavam partir. Idosos, com semblantes endurecidos pelo tempo, observavam de longe, sabendo melhor do que ninguém o que significava a ausência que se aproximava. A chuva fina, teimosa, insistia em cair, misturando-se às lágrimas e criando pequenos rios de água e dor ao longo do chão irregular do cais.


Um pouco à distância, o navio estava pronto para levar pais, irmãos, maridos e filhos para uma guerra que não era deles, enquanto no cais ficavam as mulheres, crianças e velhos, entregues ao vazio e à saudade de despedidas que pareciam intermináveis.


A despedida, naquele dia, não era apenas um ato — era uma ferida aberta, uma dança silenciosa de mãos que se soltam, de corpos que se afastam e de corações que já começam a carregar a ausência. Era o início de uma dor que todos carregariam, no cais e no navio, no silêncio das casas e no eco das trincheiras. Era o adeus que selava vidas separadas, marcadas pela espera e pela incerteza do reencontro.


Tété tinha apenas nove anos. Pequena demais para entender o que significava aquele adeus, mas grande o suficiente para sentir o peso esmagador ao seu redor. O pai, vestido no uniforme verde-oliva acenava do convés. Um homem robusto, mas cansado. Cansado de sonhos interrompidos, de lutar contra uma terra que não o desejava e por um governo que ele rejeitava. A guerra em África era uma fuga do trabalho duro no campo, da mão pesada dos senhores da terra. E, ainda assim, era um cárcere.


O olhar de Tété fixava-se no pai. Ele parecia maior no barco, mais distante, mais inalcançável. Ao redor dela, mães choravam, crianças agarravam-se às saias das avós, e os soldados seguravam cigarros com mãos trêmulas, tentando disfarçar o medo. Tété sentiu algo profundo que hoje consegue descrever mas na altura era um mistério.


Na casa da Tété, as emoções eram enterradas como sementes que nunca deveriam germinar. Não se falava de guerra. Não se falava do regime fascista. Não se falava de lágrimas. Apenas se sobrevivia. Mas, naquele instante, no cais, algo nascia dentro dela: uma dor confusa, uma saudade antecipada, um nó que apertava seu pequeno peito e reverberava no estômago.


Hoje, 6 décadas depois, Tété ainda pensa naquele dia e no impacto que ele teve na mulher que ela se tornou. O cais escuro, o aceno lento do pai, a despedida impregnada de tristeza quase fúnebre — tudo isso marcou profundamente a sua vida, moldando a sua relação com o apego, a ausência e a fragilidade dos laços humanos. Aquela despedida não foi apenas a separação de um pai que ela amava, mas o início de uma compreensão dolorosa: a vida é feita de ciclos, de encontros e despedidas, de chegadas e partidas, como uma dança entre a vida e a morte.


O pai partiu naquele dia para uma guerra distante, mas a ausência dele nunca realmente se dissipou. Ficou gravada nos silêncios da casa, nos vazios do quotidiano e na falta das palavras que nunca foram ditas. Essa despedida foi uma das primeiras lições sobre os ritmos do fim, sobre como a vida é pontuada por momentos que nos aproximam do inevitável, do desconhecido, do último adeus.


Hoje, ela observa como o ritmo da morte continua presente no mundo, inalterado. Mudam-se os lugares, os rostos, as bandeiras, mas as despedidas permanecem, repetindo-se como um ciclo interminável. Nos talhos das nações, vidas ainda são sacrificadas em nome de territórios, ideologias, bandeiras, nacionalidades, religiões… Mas para quê apressar a morte? Para quê continuar esta dança sombria, que desvaloriza a Vida?


Tété reflete sobre como aquele momento no cais, apesar de doloroso, revelou-lhe uma verdade universal: a vida é uma viagem entrelaçada por despedidas, cada uma trazendo consigo a possibilidade de transformação, mesmo que envolta em dor. No íntimo do seu ser, ela entende que, embora a morte seja uma parte inevitável da dança da existência, não deveria ser forçada pela violência ou pela guerra. A morte, pensa ela, deveria surgir como o desfecho natural de um ciclo — por vezes súbito, imprevisível, mas sempre carregado da dignidade e do significado que a vida merece.


Ritmos do Fim: Danças e Viagens com a Vida e a Morte tornou-se para Tété mais do que um título; é uma jornada em busca de equilíbrio entre as memórias e o vazio que as despedidas deixam para trás. É um esforço para transformar cada adeus em um encontro consigo mesma e com a essência do que significa viver plenamente. Porque, no final, cada despedida carrega não apenas a marca da perda, mas também uma lição — um convite para reavaliar o que realmente valorizamos, como nos conectamos com os outros e como escolhemos participar na dança eterna entre os ciclos da vida e da morte.


Será que não existe outra forma de viver? Será que não podemos abandonar o que se perpetua há séculos? A agressão, o ciclo interminável de dor e perda. Não merecem todas as vidas serem vividas em paz?


O cais de Lisboa era mais do que um ponto de partida; era um palco de despedidas que deixavam um caos invisível nas casas, nas famílias, nas almas. Era ali que o silêncio começava, espalhando-se como um eco que atravessava gerações. E hoje, olhando para trás, a Tété pergunta: o que pensavam todos os que estavam ali naquele dia, mães, pais, filhos, soldados? O que sentiam ao ver partir aqueles que amavam para uma guerra que não lhes pertencia? E o que pensam os políticos de hoje, que continuam a perpetuar essas despedidas violentas, essas partidas forçadas que espalham dor, saudade e destruição? Até quando seguiremos repetindo os mesmos erros, transformando a vida em um palco de sofrimento em nome de ideais vazios, territórios e bandeiras? Quando, enfim, aprenderemos a valorizar a paz sobre o poder e a conexão humana sobre a divisão?


O aceno do pai é uma memória que permanece viva na mente de Tété, gravada com uma clareza quase dolorosa. A mão dele, movia-se no ar de forma lenta, enquanto o navio começava a afastar-se. Não era apenas o aceno de um pai; era o gesto de dezenas, talvez centenas de homens, todos com as mãos erguidas, despedindo-se de suas famílias.


Do lado de cá, no cais, as mulheres, jovens e velhas, acenavam com lenços brancos, os mesmos lenços que serviam para enxugar as lágrimas incessantes. Os lenços balançavam como se pudessem, de alguma forma, tocar os homens que se afastavam, como se o tecido pudesse segurar um pouco mais aqueles que partiam. As crianças, confusas, olhavam para as mães e repetiam os gestos sem entender completamente o que significavam. Era uma coreografia improvisada de dor e saudade, uma dança silenciosa que unia aqueles que partiam e aqueles que ficavam.


Esta despedida, marcada pelo aceno do pai e pelo silêncio de Tété, é um dos muitos momentos que compõem os Ritmos do Fim — uma dança inevitável entre partidas e permanências, entre vida e morte. No cais, onde lágrimas se misturavam à chuva e ao Tejo, o adeus não era apenas de corpos que se separavam, mas de um ideal perdido, de um mundo que ainda não aprendeu a viver sem transformar o fim em sofrimento imposto. É nesse ritmo que Tété descobre que, embora a despedida seja parte da vida, ela também pode ser um convite para refletir sobre como queremos dançar com o tempo que temos.


Ainda há tempo para mudar o ritmo, ela acredita. Ainda há tempo para que o fim seja apenas uma passagem, e não uma imposição de sofrimento. Que o caos do cais e o caos da guerra possam dar lugar a algo novo — uma vida digna para todos. Uma despedida, enfim, do ciclo que nos aprisiona.


Em memória ao meu pai 1933-2021

Ritmos do Fim: Uma despedida
"Não contem comigo para guerras. Os inimigos são construídos."  Tété




1 comentário


Convidado:
09 de jan.

Marcas profundas.

🩷

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