A Morte na Guerra: O Preço da Defesa e o Paradoxo da Democracia
- Natércia Godinho
- 15 de dez. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 18 de dez. de 2024

Era uma manhã fria e enevoada nas margens das albufeiras do Alqueva. O silêncio parecia quase absoluto, interrompido apenas pelo som rítmico dos passos de Tété sobre a terra húmida. O nevoeiro cobria a paisagem como um manto translúcido, envolvendo tudo numa aura misteriosa. As árvores, quase sem folhas, permaneciam nuas, como testemunhas silenciosas de tempos passados. Os troncos retorcidos contavam histórias de resistência, enquanto os galhos, alguns tombados ao chão, pareciam oferecer um sussurro de despedida ao ciclo da vida.
Cada detalhe da paisagem trazia um eco de finitude, como se o bosque estivesse pausado no limiar entre o presente e a eternidade. No céu, um bando de abutres circulava, as asas desenhando sombras silenciosas sobre a água calma – uma lembrança perturbadora da natureza cíclica da vida e da morte.
Tété caminhava lentamente, cada passo uma tentativa de escapar do peso dos números que martelavam em sua mente. Naquela manhã, as notícias trouxeram mais estatísticas de vidas perdidas em guerras – vidas reduzidas a números frios, indiferentes. Quase 500 mortes por dia, dizia o relatório. E, no ano anterior, mais de 230.000 vidas haviam sido interrompidas. “Como pode o mundo aceitar isso?” pensou Tété, olhando para o reflexo do céu cinzento nas águas tranquilas.
O nevoeiro parecia refletir a inquietação de Tété, envolvendo o bosque numa melancolia silenciosa. As árvores despidas, os galhos tombados, e a ausência de som ecoavam a tristeza que pesava em seu coração. Sentindo o peito apertado, Tété parou e respirou fundo.
Tété: (Baixinho, quase num sussurro) Morte, onde estás? Preciso de ti. Hoje, quero falar. Esta tristeza não pode ser só minha. Quero entender, quero desabafar...esta coisa que os humanos tem com as guerras...
O silêncio continuou por um momento, mas logo foi rompido por um som estranho, como folhas sendo agitadas por uma brisa que não existia. Tété fechou os olhos, sentindo um leve arrepio. Quando os abriu novamente, lá estava a figura translúcida e familiar, emergindo como se tivesse sempre estado ali, apenas aguardando o chamado.
A Morte, serena, fitava-a com um olhar que misturava curiosidade e paciência, pronta para ouvir e responder àquele convite incomum.
Tété: (Com a voz embargada) Morte, é tão difícil entender... Vidas são tiradas todos os dias em guerras, em nome de ideias que dizem ser nobres – democracia, liberdade, segurança. Mas o que há de nobre em destruir famílias, em transformar pessoas em números?
Morte: (Calma) É a contradição humana, Tété. Vestem a morte com flores, com desfiles e medalhas. Chamam os mortos de heróis, mas raramente perguntam por que precisaram morrer. É um espetáculo para consolar os vivos, enquanto nada se faz para mudar a lógica que perpetua as guerras.
Tété: (Com um suspiro pesado) Isso me lembra do meu pai. Ele foi militar na guerra colonial. Detestava falar sobre aquilo. Só depois de adulto é que comecei a entender por quê. O peso da guerra, o que ele viu, o que perdeu... tudo isso silenciava qualquer tentativa de heroísmo. Era como se ele carregasse a vergonha de algo que nem escolheu fazer.
Morte: (Com um olhar mais sério) É exatamente isso, Tété. Os que viveram a guerra sabem que não há glória na destruição, apenas cicatrizes. Mas, enquanto eles silenciam, outros erguem bandeiras e fazem discursos, perpetuando o ciclo. O sacrifício deles é usado para justificar ainda mais sacrifícios.
Tété: (Com tristeza) E é isso que me deixa revoltada. Celebramos soldados com flores, mas fazemos pouco ou nada para evitar que outros sigam pelo mesmo caminho. É como se esquecêssemos o custo humano, o sofrimento real.
Morte: (Serena) O custo humano, Tété, é sempre esquecido. É mais fácil construir monumentos para os mortos do que encarar as razões pelas quais morreram. É mais fácil glorificar o passado do que lutar por um futuro sem guerras.
Tété: (Abaixando a cabeça) E nós, que estamos vivos, como fazemos para mudar isso? Como honramos essas vidas sem cair na hipocrisia de florescer campos de guerra?
Morte: (Sentando-se ao lado de Tété) Começas reconhecendo o valor de cada vida, Tété. Não como uma peça num tabuleiro ou uma estatística num relatório, mas como uma existência única, cheia de sonhos, medos e amores. E, mais importante, você questiona. Questiona as narrativas, questiona os líderes, questiona a aceitação do inaceitável.
Tété: (Pensativa) É isso que Ritmos do Fim pode fazer, não é? Fazer as pessoas pensarem sobre a morte – não como um destino inevitável em guerras, mas como parte de algo maior. Como um convite a viver de forma mais consciente e a rejeitar essa glorificação da destruição, estas palavras do meu pai ressoam em mim. Ele detestava guerras.
Morte: (Com um sorriso suave) Sim, Tété. Porque, no fim, a verdadeira homenagem a quem se foi não é erguê-los como mártires, mas lutar por um mundo onde ninguém mais precise de morrer assim.
Tété: (Parando para olhar o céu) Talvez seja isso que mais me dói. Cada uma dessas 500 vidas ou mais perdidas por dia... São sonhos interrompidos, famílias devastadas. Quem eram essas pessoas? O que queriam da vida?
Morte: (Com um olhar compassivo) Essa é a pergunta que poucos fazem, Tété. A humanidade esconde-se atrás de números, pois é mais fácil contar corpos do que encarar histórias. Mas cada uma dessas vidas tinha um valor único. Eram poemas inacabados.
Tété: (Com determinação) Então precisamos honrar essas histórias. Não posso mudar o mundo, mas talvez possamos ensinar as pessoas a viver de forma mais consciente. Não há maneira melhor de honrar os que se foram, certo?
Morte: Exato. E é por isso que eu, que tantos temem, estou aqui para ensinar. A morte não é a inimiga, mas a grande professora. Não nas mãos de armas, mas como parte de um ciclo natural. E, Tété, é isso que Ritmos do Fim pode fazer: ajudar as pessoas a re-significar a morte e, mais importante, a vida.
Tété: (Com curiosidade) Mas como, Morte? Como podemos viver em tempos de caos e guerra, valorizando cada momento?
Morte: (Com sabedoria) Comecemos pelo básico. Reconheça o valor de cada vida. Atrás de cada número está uma pessoa, um universo inteiro. Reflete sobre quem eram essas pessoas. Imagina suas histórias. Escreve memórias, cartas. Reconheçe o impacto que cada vida teve no mundo.
Tété: (Anotando mentalmente) Sim... E o que mais?
Morte: Questiona as contradições, Tété. Se a democracia valoriza a vida, como pode destruí-la tão impiedosamente? Informa-te. Participa em debates, luta pela paz. Não aceites narrativas que justificam guerras como inevitáveis.
Tété: (Com os olhos brilhando) E viver com plenitude... Como faço isso, Morte? Às vezes parece tão difícil.
Morte: (Sorrindo) A morte está sempre presente, mesmo fora das guerras – no fim de relações, de fases da vida, de quem somos. Reserva tempo para aquilo que alimenta a alma: caminhar na natureza, ouvir música, dançar. Medita sobre os ciclos da vida, como as estações que vão e vêm.
Tété: (Inspirada) E que dicas darias para quem lê Ritmos do Fim?
Morte: (Com firmeza) Cria um legado de paz. Cada pequeno gesto – educar uma criança sobre empatia, praticar o diálogo – é uma semente. Cultiva a arte de se despedir. Aprende a deixar ir, seja uma pessoa, um hábito, ou uma ideia. Valoriza os ciclos. Reconheçe que cada fim traz consigo um novo começo.
Tété: (Com um sorriso suave de lágrimas) Acho que começo a entender. As guerras podem ser um lembrete brutal de como falhamos em valorizar a vida, mas também são um convite para mudar. Para repensar. Para viver melhor.
Morte: (Com um tom reflexivo) Isso mesmo, Tété. A verdadeira transformação começa quando aceitamos que a vida – em todas as suas formas – é preciosa demais para ser desperdiçada. Que Ritmos do Fim inspire as pessoas a transformar números em histórias, e histórias em uma nova forma de viver.
Enquanto continuavam a caminhar pelo bosque, Tété sentiu algo diferente. Não era apenas tristeza pelos números assustadores das guerras. Era uma determinação renovada de viver cada dia com mais consciência, mais amor e mais coragem. Afinal, se a morte pode ensinar algo, é que a vida merece ser vivida plenamente, como um ciclo contínuo de renascimentos.
Os passos de Tété continuaram pelo trilho, agora mais leves. O silêncio ao seu redor não era mais opressor, mas uma pausa necessária, como uma respiração antes do próximo movimento da dança. O sol lentamente rompendo o nevoeiro lembrava-a de que, mesmo no meio da morte e do caos, há sempre espaço para renascimento e esperança.
Se a natureza nos ensina algo, é que a morte não é destrutiva por si só – é parte de um ciclo de renovação. Mas a morte imposta pela guerra é um rompimento desses ciclos, um desperdício de vida que desonra o próprio conceito de existência.
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