Ritmos do Fim: Um Copo de Água
- Natércia Godinho
- 19 de ago.
- 4 min de leitura
Atualizado: 24 de ago.
Um copo de água. Tão simples e tão raro, sobretudo quando o verão nos traz a sede, as secas e os fogos que devoram o país.
Portugal arde em várias áreas, e eu, aqui em Pampilhosa da Serra, testemunho à distância o que o calor deixa para trás: cinzas, fumo, sirenes que correm contra o destino.
No meio do fogo, o copo de água é mais do que líquido: é vida, é lembrança de tudo o que é essencial.
A mesa está posta no coração da serra, feita de troncos queimados, coberta pelo fumo que dança no ar como se fosse incenso. Ao longe, os bombeiros entregam-se às chamas, e Tété prepara-se para um jantar improvável: à mesa com a sua amiga, a Morte.
Tété chega com passos cautelosos, como quem pisa brasas invisíveis. A Morte não traz foice, mas um copo de água nas mãos — água rara, símbolo do que falta neste verão em que tudo arde.
Antes de se sentar, Tété lembra-se de Kaya, uma alemã que conhecera naquela aldeia próxima. Kaya chorava porque teve de deixar tudo para trás. Só teve tempo de pegar no cão e no gato. Chorava pela casa, pelas fotografias, pelas hortas, pelas pequenas coisas que compunham a vida. Tété pôs os braços à volta do corpo dela e sentiu a sua tristeza, os ossos frágeis, como quem segura um copo prestes a entornar.
Enquanto a segurava, percebeu que não era só Kaya. Era todos nós: frágeis diante da perda, agarrados ao que nunca foi nosso. Condicionamos a vida de tal maneira que damos importância quase absoluta ao que possuímos — a casa, os móveis, os retratos, o carro, os filhos, o marido, até às panelas da cozinha. Esquecemo-nos de que tudo isto é frágil como cinza ao vento. Esquecemo-nos de que a única posse verdadeira — a respiração, o instante, o abraço vivo, um simples copo de água — pode escapar-nos mais rápido do que uma parede a arder.
A Morte ouve a lembrança e sorri:— Vês, Tété? As casas ardem, os objetos desaparecem, mas a respiração continua. Foi isso que deste à Kaya: o copo invisível da vida em vez da perda.
Tété olha em redor e suspira. As árvores gritam em silêncio, os animais fogem, as pessoas fecham janelas e rezam para que o vento mude, que a chuva seja abundante. O jantar da existência começa no cenário mais humano que existe: quando a vida está em risco, cada segundo é saboreado como um gole de água fresca.
— Estás a ver, Tété? — diz a Morte, com voz que crepita como madeira no fogo. — Sou eu quem dá o tempero à vida. Sem mim, os teus copos de água seriam sempre mornos.
Tété serve-se de pão duro e queijo curado, como quem mastiga memórias de infância. Sorri com ironia:— Tu sempre apareceres quando o lume cresce. Mas diz-me: não és tu que também consomes tudo, tal como este fogo?
A Morte abana a cabeça:— Eu não sou destruição cega. Eu sou lembrança. O fogo da serra mostra-te o que esqueces: que nada é eterno, que até as árvores mais altas podem cair em cinza, que até o verão se esgota. Mas lembra-te: até no meio do fogo, há sempre um copo de água.
Do prato de Tété escapa-se um aroma salgado — não do queijo, mas do mar que ela traz dentro de si.— E o mar, esse também morre?
A Morte ergue o copo de água:— O mar evapora, seca, transforma-se em nuvem, em chuva, em rio. Morre para renascer. É o mesmo que acontece contigo, comigo, com tudo. A tua tarefa é só uma: viver sabendo que este copo de água pode ser o último, e ainda assim bebê-lo com gratidão.
Ao longe, os bombeiros enfrentam as chamas. Homens e mulheres de rosto suado e olhos firmes. Alguns já perderam a vida, entregando o corpo ao fogo para salvar outras vidas. É o ciclo da vida e da morte a repetir-se diante de nós: uns partem para que outros possam continuar.
A Morte olha para eles e sorri:— Não me odeies, Tété. Eles não me combatem a mim. Combatem o esquecimento de viver.
Tété pousa o pão, respira fundo o fumo. As lágrimas confundem-se com a cinza no rosto:— Então queres que eu viva como se cada jantar fosse o último?
A Morte levanta-se, deixa o copo vazio na mesa e responde:— Não. Quero que vivas como se cada jantar fosse o primeiro.
E foi assim que, entre cinzas e silêncio, a conversa terminou. Mas não ficou apenas na serra: ficou dentro dela como um exercício simples, ao alcance de todos, para nunca esquecer que o fogo pode ser também um mestre — e que até um copo de água pode ser a maior das riquezas.
🌱 Convite a um exercício prático – Respirar no meio do fogo
Fecha os olhos um instante. Imagina o fogo ao teu redor, como o da serra que arde, ou como as tuas próprias preocupações a crepitar.
Pergunta-te baixinho: se tivesse de sair agora, o que levaria comigo? Deixa que a resposta venha sem esforço... quase sempre é um rosto, um animal, ou apenas o milagre da tua própria respiração.
Inspira fundo. Segura o ar como quem segura a vida. Expira devagar e oferece às cinzas aquilo que não podes controlar.
Depois abre os olhos. Olha em redor e escolhe um detalhe simples: um copo, uma planta, uma pedra, um som.
E diz em silêncio ou em voz baixa:“Este é o primeiro jantar. Estou viva(o).”
🌱 Dedicação
Este texto é dedicado não só aos que combatem as chamas, mas também a todos os que, em algum momento, foram lembrados de que nada nos pertence verdadeiramente.
Os bombeiros que oferecem a sua vida lembram-nos que o valor não está na casa que arde, nem nos bens que se perdem, mas no gesto de salvar outro ser humano.
E talvez seja essa a grande lição do fogo: reduzir-nos ao essencial, devolver-nos à vida que não se compra nem se acumula — o abraço, o sopro, o copo de água partilhado.
Que possamos aprender a viver como quem já sabe que vai perder tudo, e ainda assim, dançar.
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